Na costa catarinense, as áreas de cultivo de mariscos, ostras e vieiras estão se transformando em um grande loteamento flutuante. Cada maricultor tem seu “terreno” demarcado para produzir, separado por “ruas” por onde as embarcações podem passar sem que os cultivos marinhos atrapalhem a navegação e a pesca. As boias têm cores específicas para demarcar cada fazenda, sinalizar a navegação e suspender os cultivos. Em “pedaços de mar” legalizados, dentro de limites estabelecidos pela União, os maricultores podem trabalhar com mais tranquilidade.
Nem sempre foi assim. Disputa de áreas, conflitos com a pesca e a navegação, invasões, vandalismo, roubo e desorganização eram os principais problemas decorrentes da ausência de regras e demarcação na costa catarinense. Sem autorização para usar essas áreas, que pertencem à União, a maricultura não passava de uma atividade informal. “A gente não sabia onde podia cultivar, se podia ampliar o cultivo, se estava em área permitida ou não. Às vezes isso até gerava conflitos com pescadores artesanais”, conta o maricultor Flávio Martins, de Palhoça.
Essa era a situação que perdurava desde 1989, quando foram instalados os primeiros cultivos comerciais de moluscos marinhos no Estado. Somente a partir de 2003 passaram a ser publicadas diretrizes para solicitar autorizações de uso de águas da União para a maricultura. “Como os empreendimentos catarinenses foram instalados antes do estabelecimento das regras, regularizar as fazendas marinhas no Estado se tornou uma tarefa difícil”, lembra André Luís Tortato Novaes, pesquisador do Centro de Desenvolvimento em Aquicultura e Pesca (Cedap) da Epagri.
Organização na água
Entre 2005 e 2007, a Epagri participou da elaboração dos Planos Locais de Desenvolvimento da Maricultura (PLDM), nos quais, de forma participativa, foram definidas áreas na costa do Estado para cultivar ostras, mariscos e vieiras. O objetivo dos PLDM era estimar o potencial dos municípios litorâneos para essas atividades, planejar os parques aquícolas e levantar informações para regularizar a maricultura em águas da União.
Esse esforço resultou no planejamento de 837 áreas aquícolas, totalizando 1.208 hectares distribuídos em 13 municípios entre Palhoça e Itapoá. Em 2011, o então Ministério da Pesca e Aquicultura (MPA) começou a realizar licitações para ofertar essas áreas aos produtores catarinenses.
Do total de áreas planejadas, 700 foram demarcadas e 617 já foram cedidas aos maricultores, abrangendo cerca de 900 hectares. Desse modo, Santa Catarina tornou-se o primeiro estado brasileiro a ter seus parques aquícolas marinhos oficialmente regulamentados.
Com documentos na mão, os maricultores ganharam legalmente o direito de explorar suas fazendas flutuantes por 20 anos. “A demarcação buscou instruir os produtores sobre a posição correta das áreas aquícolas que devem ocupar. A regularização da atividade objetivou tirar os produtores da clandestinidade no que se refere à ocupação de águas da União por projetos de aquicultura e, com isso, possibilitar o acesso a políticas públicas e coibir a ocupação irregular da zona costeira”, resume o pesquisador André.
Mas para que a atividade esteja completamente regularizada, as estruturas de cultivo devem ser instaladas dentro dos limites estabelecidos pela União. Isso significa que praticamente todas as fazendas marinhas do Estado devem ser transferidas para novas áreas. Muitas não obedecem ao loteamento e outras estão em desacordo com a legislação, que prevê, por exemplo, distância de 200 metros de praias e de 50 metros dos costões.
Para orientar os produtores sobre onde e de que forma eles devem instalar seus cultivos, a Epagri elaborou projetos técnicos que se tornaram convênios entre o MPA e a Secretaria de Estado da Agricultura e da Pesca. O objetivo foi demarcar as propriedades, fazer o monitoramento ambiental dos parques aquícolas e realizar ações de extensão com os maricultores sobre os critérios técnicos e legais de ocupação das áreas. Para discutir a ocupação dos lotes marinhos, a equipe da Epagri ainda realizou seminários e reuniões técnicas nos municípios litorâneos onde há parques aquícolas instalados.
Para os produtores já estabelecidos, o prazo para ocupação é de 12 meses após a demarcação das áreas, que foi finalizada em março de 2016. Após esse prazo, não poderá haver estruturas de cultivo fora dos limites dos espaços legalizados. Para padronizar as estruturas de cultivo, o prazo é de 48 meses, e os novos maricultores têm até três anos para instalar suas fazendas nas áreas cedidas. A fiscalização inicia assim que esses prazos expirarem.
Apesar da aproximação das datas, poucas áreas cedidas e demarcadas no Estado foram ocupadas pelos maricultores até agora. O pesquisador André Novaes, da Epagri, alerta que praticar a maricultura em áreas não legalizadas expõe os produtores às penalidades previstas para casos de ocupação indevida de áreas da União.
Mãos à obra
Nei Leonardo Nolli, da praia de Sambaqui, em Florianópolis, não perdeu tempo: já transferiu todo o seu cultivo de ostras para os 1,28ha de área demarcada. Ele foi o primeiro da comunidade a fazer a mudança e, hoje, tem endereço no mar: parque aquícola 4, área 330. “Não tenho outra atividade, essa é minha única fonte de renda, então levo muito a sério. Levei um ano para fazer a transferência. Conforme acabava a safra passada, fui transferindo os lotes para as áreas novas. Muita gente não leva a sério que tem que transferir, mas os prazos estão acabando”, alerta.
Nei conta que o trabalho maior foi fixar as poitas (pesos que servem como âncoras) e as estacas. “Nem tudo deu para remover da área antiga. Consegui transferir os cabos, mas as poitas e as estacas coloquei novas”, explica. Agora só falta padronizar as boias. “Recebemos orientação da Epagri em reuniões e pudemos tirar todas as dúvidas sobre a transferência do cultivo”, conta.
O produtor colhe 20 mil dúzias de ostras por ano e vende para restaurantes, mercados e peixarias. A área demarcada tem o mesmo tamanho da anterior e fica mais próxima da casa dele, o que facilita o controle. “A marcação das áreas é importante porque tem um instrumento legal. Até então estávamos clandestinos, mas agora é oficial e podemos produzir com tranquilidade na área”, comemora.
Antes da demarcação, Nei já precisou deslocar seu cultivo por ter conflito com outras atividades. “Até a comunidade aceita melhor a nossa atividade porque está legalizada. Antes questionavam se estava próxima a áreas de praia e costão. Agora estou em um local que tenho o direito de usar.”
Embora não tenha tradição de trabalhar com o mar, Nei investiu na atividade por paixão. “Sempre tive bastante empatia com o mar. Pescava desde pequeno com meu pai, mas não era a profissão dele”, conta. Na universidade, cursou Agronomia e se encaminhou, aos poucos, para estudos na área de peixes. Formou-se em 1994 e, dois anos depois, era maricultor. “A produção de ostras ainda estava no começo no Estado. Eu tinha bastante contato com a pesquisa e a produção, então investi na atividade e estou nela até hoje.”
Tranquilidade para trabalhar
Mais ao sul da costa catarinense, na Praia do Pontal, em Palhoça, Flávio Martins começou a produzir mexilhões no ano 2000 com apoio do sogro, José Manoel de Souza, também conhecido como Zé Tucano. Foi com o primeiro maricultor daquela praia que Flávio, que na época trabalhava como representante comercial, aprendeu os segredos da atividade. “Meu sogro começou a produzir aqui na praia em 1989. Aprendi muita coisa com ele, que já sabia o que dava certo na criação de marisco”, lembra.
O cultivo de Flávio iniciou pequeno, ainda no sistema de estacas, que mais tarde foram substituídas pelos long lines. “Dava trabalho para tirar 5 toneladas por ano. Hoje produzo 150 toneladas por ano e tenho mais 39 produtores que fornecem matéria-prima para a minha indústria de congelados à base de frutos do mar”, conta. Hoje, a Marpesc Empanados processa 4 toneladas de marisco por dia. Os produtos são vendidos para o consumidor final, restaurantes e distribuidores do Brasil todo.
Embora os negócios tenham crescido, a tranquilidade que Flávio precisava para trabalhar e investir na produção só veio com a regularização dos parques aquícolas. “Antes a gente usava a água clandestinamente; a qualquer momento podia vir um órgão de fiscalização e tirar nosso cultivo. Mas agora estamos amparados pela lei”, comemora. Com a licença ambiental, ele pode até pegar financiamento no banco como maricultor. “Eu me sinto bem mais seguro para investir na atividade. Antes era muita instabilidade.”
No fim de 2016, Flávio começou a transferir seu cultivo para a área regularizada, que fica próxima da antiga e tem o mesmo tamanho, 2 hectares. “Colho na área antiga e vou plantando na nova. Pretendo terminar no fim do ano”, conta. Ele precisou investir em material e mão de obra, mas garante que vale a pena. “Com a demarcação a gente sabe onde é nosso parque aquícola, respeita as boias e pronto. Você sabe que aquela área é realmente sua, controla melhor o que é seu”, diz.
Para ele, agora que os produtores têm seu endereço no mar, vai ficar mais fácil trabalhar. “Se arrebentar um cabo, se alguém usar a boia errada ou deixar lixo, vamos saber de quem é o cultivo. Também vamos poder fazer a rastreabilidade dos produtos. O consumidor vai saber onde foi produzido o alimento e quando foi colhido. Todo mundo sai ganhando”.
SC NO TOPO DA PRODUÇÃO
Mais de 90% da produção nacional de moluscos sai da costa catarinense. São 572 maricultores que produzem cerca de 20 mil toneladas de mexilhões, ostras e vieiras por ano. Em 2015, essa colheita movimentou R$ 78.895.697,64 no Estado.
Os mexilhões respondem pelo maior volume: foram 17 mil toneladas em 2015, colhidas principalmente em Palhoça, Bombinhas e Governador Celso Ramos. As ostras somaram 3 mil toneladas e a produção de vieiras foi de 37,21 toneladas.
REGRAS PARA FAZENDAS FLUTUANTES
Com a regularização das fazendas marinhas, os produtores devem seguir um conjunto de normas. As áreas serão fiscalizadas por diversos órgãos e, em caso de irregularidade, o maricultor pode sofrer penalidades como advertência, multa, perda do direito de usar a área e até prisão. Conheça algumas dessas regras:
– O maricultor não pode fazer desconche de moluscos nas áreas de cultivo, deve manter boas condições de higiene nas unidades de apoio e destinar corretamente os resíduos da produção.
– É obrigatório o uso de identificação nos limites das áreas aquícolas, com o número da área. Recomenda-se fixar adesivos nas boias demarcatórias.
– As estruturas de cultivo suspenso flutuante normalmente são fundeadas com poitas ou estacas posicionadas no fundo do mar. Apesar de ficarem submersas, essas estruturas devem ser instaladas preferencialmente dentro dos limites das áreas aquícolas.
– As balsas de manejo, plataformas flutuantes que servem como base para manejo da produção e manutenção das estruturas, devem ser instaladas dentro dos limites das áreas aquícolas ou em locais devidamente autorizados pela Marinha do Brasil. Elas não podem ser fundeadas nos corredores entre áreas aquícolas, que são espaços destinados à navegação.
– É proibido o uso de flutuadores de metal, recipientes de produtos tóxicos, garrafas PET e outros materiais que possam promover impacto visual ou dano ambiental. Os maricultores devem usar flutuadores de formato padronizado.
– Não é permitido usar flutuadores nas cores verde, vermelho, amarelo e laranja nos long lines, pois elas são usadas na sinalização náutica ou na delimitação física das áreas aquícolas. Cores sugeridas para flutuadores são branco, preto, azul e cinza.
Por Cinthia Andruchak Freitas, jornalista – cinthiafreitas@epagri.sc.gov.br