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Projeto impulsiona a produção de carne bovina em Santa Catarina

  • Pecuária
Foto: Aires Mariga/Epagri

Santa Catarina é líder nacional na produção de suínos e o segundo maior produtor brasileiro de frango, mas quando o assunto é carne bovina, a realidade é bem diferente: o que é produzido aqui ainda não abastece o mercado interno. De acordo com o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, em 2014 a produção catarinense foi de 151,3 mil toneladas, o que significou pouco mais da metade consumida no Estado.

Para um dos pesquisadores da Estação Experimental da Epagri de Lages, o engenheiro-agrônomo Cassiano Eduardo Pinto, a produção insuficiente está relacionada a uma atividade desenvolvida com baixo uso de tecnologia, um setor pouco fortalecido e pecuaristas descapitalizados. Isso significa que Santa Catarina tem condições de aumentar a produção. “Não precisamos trabalhar o mercado, pois ele está aqui. Somente temos que fazer o trabalho de aumentar a produção”, afirma o presidente da Associação Rural de Lages, Márcio Pamplona.

Isso, na verdade, já vem acontecendo desde 2011, quando a Epagri começou a intervir nas propriedades do Planalto Sul Catarinense – onde a pecuária está presente em 87% dos estabelecimentos rurais. A transformação está se dando pela aplicação de um conjunto de tecnologias desenvolvidas pela pesquisa da Empresa e colocadas em prática pelo serviço de extensão rural da Epagri e de técnicos da iniciativa privada. A base da intervenção está nas pastagens naturais e no manejo adequado de toda a propriedade. Desde que as ações da Epagri começaram, a rentabilidade dos pecuaristas atendidos dobrou, e a produção animal vem crescendo cada vez mais.

Reprotec

As mudanças no campo fazem parte da Rede de Propriedades de Referência Tecnológica (Reprotec). Elas foram implantadas inicialmente em seis propriedades de referência nos municípios de maior rebanho de bovinos de corte na região: Bom Jardim da Serra, Capão Alto, Lages, Painel, São Joaquim e São José do Cerrito. Foram selecionadas aquelas comandadas por pecuaristas familiares, com baixo nível tecnológico e baixa renda bruta anual.

O projeto é executado pela Epagri e pela Associação Rural de Lages, financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Estado de Santa Catarina (Fapesc), com apoio da Embrapa Pecuária Sul. Os recursos foram destinados para a criação de uma unidade demonstrativa em cada propriedade, e os índices produtivos por elas alcançados vão servir de indicadores para mensurar os resultados.

Segundo o coordenador das ações de extensão do Reprotec, engenheiro-agrônomo Newton Borges da Costa Júnior, as alternativas para melhor desempenho de cada unidade foram tratadas com a família de acordo com o sistema de produção: cria, recria ou engorda. As propriedades foram mapeadas, levando-se em conta o nível tecnológico do produtor, as características do local (relevo, solo, clima) e as perspectivas de receita de cada família, entre outros fatores. “Em todas utilizamos tecnologias desenvolvidas pela pesquisa, mas adequadas à realidade de cada uma”, disse. O comum a todas foi o manejo da pastagem natural.

A região tem por vocação a pecuária desenvolvida em campo nativo devido às condições de clima muito frio e úmido, altas altitudes, terreno acidentado e solos pouco férteis e pedregosos. O coordenador das ações de pesquisa do projeto, Cassiano Eduardo Pinto, explica que essa pastagem é de rica biodiversidade, porém apresenta baixos índices de produtividade. O primeiro passo do projeto foi, portanto, atuar no ajuste do manejo da propriedade e no melhoramento desse pasto para aumentar seu potencial produtivo.

Cassiano e Newton recomendam o manejo da pastagem em todas as propriedades (Foto: Aires Mariga/Epagri)

Manejo da pastagem

“Já tínhamos pasto plantado em consórcio com a pastagem nativa, mas plantar por plantar não é garantia de sucesso. Tem que dimensionar, saber que tipo de animal vai em cima e o que se objetiva com ele”, diz o pecuarista Vitor Hugo Schneider, de São José do Cerrito, que cria e engorda em 102 hectares. Newton explica que Vitor já trabalhava a pastagem, mas de forma incorreta, sem retorno financeiro. Por meio do Reprotec, a propriedade investiu de forma correta em uma unidade demonstrativa de 24 hectares, o onde o solo foi corrigido, a área foi piqueteada e a pastagem passou a ser manejada em consórcio com espécies de inverno e verão.

A base forrageira de inverno são os trevos branco (Trifolium repens) e vermelho (Trifolium pratensis), em consorciação com as gramíneas azevém (Lolium multiflorum), aveia (Avena sativa e Avena stringosa) e capim-lanudo (Holcus lanatus). Já a base das tropicais são a tífton (Cynodon dactylon) e a hemártria (Hemarthria altissima), em consorciação com as leguminosas. “Foram formados 11 piquetes. Para montá-los, levou-se em consideração a água e a facilidade de mão de obra, por isso o tamanho de cada um varia. A lotação animal também é variável; depende da estação do ano, das condições do clima e da categoria de animais”, explica Newton.

Vitor Hugo conduz a propriedade com sua família, onde contam com um rebanho de 150 animais, o dobro do que possuíam em 2011, antes do Reprotec. Segundo ele, o principal responsável por esses números foi o manejo da pastagem feito de forma correta, que hoje alimenta o dobro de animais em uma mesma área. A orientação dada ao pecuarista é sempre manter a pastagem com altura ideal para a saída dos animais para que se permita a rebrota e o retorno mais rápido do rebanho (em 20 a 30 dias) em comparação com quando o pasto é rapado. Outra estratégia importante foi selecionar a melhor pastagem para consumo do gado que tem prazo para venda. “Nessa propriedade o objetivo é aumentar o ganho de peso por área. Por isso as ações são sempre para melhorar a qualidade de acabamento de carcaça, que deve contar com cobertura de gordura adequada e qualidade genética”, explica Newton.

Vitor Hugo optou por raças que garantem melhor preço no mercado (Foto: Aires Mariga/Epagri)

O pecuarista entrega para o abate 80 bois por ano com 18 meses de vida. Seu lucro hoje está em torno de 40% maior que em comparação ao período em que não fazia parte do projeto. “Ele é um produtor jovem, com formação em administração e empresas e com alto nível tecnológico. Isso permitiu uma rápida mudança na propriedade em busca de resultados. Uma delas foi entender que o objetivo é a terminação, o que o fez abandonar a atividade de cria e optar apenas pela recria e engorda”, ressalta Newton.

Mudanças tecnológicas também foram feitas na propriedade de Vitorli, em Bom Jardim da Serra. O pecuarista é a 11a geração a desenvolver a atividade tradicional da família, que veio do Rio Grande do Sul há 250 anos, atraída pelos campos nativos. Vitorli assumiu a propriedade de 140 hectares em 1968, e há 36 anos ele divide com sua esposa, Vera, o trabalho de produzir terneiros para venda após o desmame. Ele relata que, por muitos anos, a atividade foi desenvolvida de forma tradicional, sem nenhuma tecnologia, com pouco ou nenhum planejamento e produtividade nos padrões da região: lotação de 0,3 cabeça por hectare, taxa de repetição de cria em torno de 46% (capacidade da fêmea de ciclar e conceber com cria ao pé) e uma média de 0,15 terneiro/ha/ano.

A solução encontrada pela Epagri para Vitorli também foi manejar a pastagem nativa, cuidando da altura do pasto na entrada e saída dos animais. Lá foi implantada uma unidade demonstrativa de 12 hectares. Pelas características do local – muito frio e úmido devido a altitudes médias de 1.200m –, optou-se pelo cultivo apenas de pastagem de inverno: trevo-branco, azevém, aveia e capim-lanudo. O solo também foi adubado, recebeu calcário e deixou de sofrer queimadas, ação comum na região que diminui a biodiversidade do pasto e, consequentemente, a quantidade da pastagem.

Newton explica que, para repetir a cria, a fêmea precisa recuperar o score corporal. Por isso ela vai para o piquete com a pastagem melhorada, que oferece um balanço alimentar superior. O resultado foi de 90% de repetição de cria, aumentando o número de terneiros em até 60%. Com o melhoramento do campo nativo, a lotação passou a ser de uma unidade animal (450kg de peso vivo) por hectare no inverno e dois no verão, e as fêmeas estão aptas à reprodução com dois anos e não mais com três. A propriedade tem 100 vacas e a produção atual é de 85 terneiros por ano, praticamente toda vendida na Feira do Terneiro, que o município realiza há mais de 40 anos. Os animais vão para lá com 6 a 8 meses e uma média de 225kg – peso que só foi padronizado depois do Reprotec. “O fator mais importante para essa mudança de produtividade foi o manejo da pastagem e do rebanho ao longo do ano”, afirma Vitorli.

“Esse projeto vem ao encontro da finalidade da Associação Rural de Lages, que é fazer com que nossa atividade seja remunerada para manter a família no campo. Além de trazer mais riqueza para a família, as divisas ficam na cidade, que também passa a ofertar melhor infraestrutura para os moradores”, diz o presidente da entidade, Márcio Pamplona.

Em poucos anos, Vitorli melhorou os índices produtivos da propriedade (Foto: Aires Mariga/Epagri)

Manejo reprodutivo

A alimentação em pastagens manejadas foi fundamental para intensificar as parições e produzir bezerros sadios e desmamados com bom peso na propriedade de Vitorli, mas não foi a única técnica usada pelo produtor. Outras foram a estação de monta bem definida, a inseminação artificial, o exame andrológico dos touros e o descarte dos inférteis.

De acordo com Newton, definir a estação de monta permite planejar o nascimento dos terneiros. No caso de Vitorli, que mora em uma região muito fria, as vacas passaram a criar no começo da primavera, período em que a pastagem natural tem mais qualidade e crescimento intenso. Isso faz com que as fêmeas recuperem o score corporal mais rapidamente e logo estejam aptas à reprodução e produzam mais leite, desmamando terneiros pesados.

Mas o cuidado não deve ser apenas com as fêmeas e as crias; atenção especial também deve ser dada aos reprodutores. Segundo Newton, trabalhos científicos comprovam que 18% dos touros apresentam problemas reprodutivos, e o prejuízo de um animal infértil trabalhando em um rodeio de 35 vacas gira em torno de R$23.000/ano. “Por isso, recomendamos que se faça o exame andrológico anualmente antes da estação de monta, e seja feito o descarte dos inférteis. O investimento é de R$220,00”, diz o extensionista.

Vitorli seguiu à risca todas as recomendações da Epagri. E este foi o primeiro ano em que o pecuarista recorreu à inseminação artificial. “Fatores como a escolha de uma empresa séria para esse trabalho e de um touro com sêmen de qualidade são importantes ao se optar por essa técnica”, diz Vitorli. Na primavera deste ano vão nascer as primeiras crias da inseminação.

Para recuperar o score corporal, a fêmea vai para a pastagem melhorada (Foto: Cassiano Pinto/Epagri)

Genética

A escolha da raça do gado foi outro fator importante para ambos os pecuaristas. Tanto Vitorli como Vitor Hugo optaram por cruzamentos com raças britânicas, que garantem mais precocidade, maior deposição de gordura na carcaça e, consequentemente, melhor preço no mercado. Ambos escolheram animais das raças Angus, Devon e Hereford – de origem britânica –, que oferecem boa qualidade de carne em termos de sabor, maciez e “marmoreio” (acúmulo de gordura intramuscular).

Vitor Hugo é um dos 24 pecuaristas da região que integram o Campo das Tropas, projeto também executado pela Associação Rural de Lages que trabalha a produção de bovinos de corte priorizando a organização da cadeia produtiva, a rastreabilidade, o bem-estar animal e a sustentabilidade social, econômica e ambiental. O objetivo é oferecer um produto animal de qualidade superior ao que está no mercado por meio de acordos comerciais que facilitem a comercialização da carne produzida pelos participantes.

Os animais são abatidos entre 15 e 23 meses de idade, com peso médio de 470kg de peso vivo e rendimento de carcaça em 52%. O acordo tem oportunizado agregação de valor na carne 12% superiores aos preços médios de mercado. São entregues 15 carcaças por semana a um supermercado de Lages. “O produtor é ‘vendedor de carne’ diretamente ao mercado consumidor, e não produtor de bois”, ressalta Pamplona. Segundo Cassiano, a qualidade do produto tem chamado a atenção de consumidores de outras regiões: uma rede de supermercados e uma cooperativa de produtores do sul do Estado têm interesse em comercializar a carne por uma aliança de mercado.

O Campo das Tropas oferece ao mercado carne de qualidade superior (Foto: Aires Mariga/Epagri)

Projeto referência

Na avaliação do gerente técnico da Fapesc, Nelton Antonio Menezes, o Reprotec é estratégico para o desenvolvimento da pecuária catarinense, pois ao validar no campo as tecnologias da pesquisa, está fomentando uma demanda importante de um setor prioritário da economia. “Já é um projeto referência, com retorno acadêmico, tecnológico e ambiental”, diz.

O projeto foi reconhecido em 2013 com o Prêmio Expressão de Ecologia, certificado pelo Ministério do Meio Ambiente como a maior premiação ambiental do Sul do Brasil, promovido pela editora Expressão. Outro reconhecimento veio em 2016, da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), ao selecionar o projeto para compor sua plataforma de Boas Práticas para o Desenvolvimento Sustentável.

Os coordenadores atribuem essas conquistas ao paradoxo que a sociedade contemporânea vive, que foi observado no Reprotec: atuar com a possibilidade de preservação ambiental e produtividade, ofertando à sociedade proteína nobre – que é a carne vermelha – sem se descuidar da conservação dos recursos naturais. Atualmente, o Reprotec conta com 1.532ha de pastagens naturais manejadas e 95ha de pastagens cultivadas, contribuindo com o sequestro de mais de 150 mil toneladas de carbono por ano da atmosfera.

Mais de cinco mil de pessoas foram atraídas em dias de campo para conhecer os resultados do Reprotec, que apareceram já nos primeiros anos (veja a tabela abaixo): as propriedades referência reduziram a idade de entoure de novilhas em um ano, a repetição da prenhez se deu em 87%, os terneiros foram desmamados com 230kg de peso vivo, os índices de natalidade chegaram a 87% e a produtividade em 662kg de peso vivo/ha nas áreas de pastagem para terminação (animais para abate). “Índices produtivos como esses colocam a pecuária de corte no mesmo patamar de rentabilidade que culturas intensivas de grãos como a soja e o milho”, ressalta Cassiano.

Coeficientes técnicos de uma propriedade de cria tradicional e das propriedades de cria assistidas pelo Reprotec na Serra Catarinense

CoeficienteCria tradicionalCria tecnificada
Idade na 1a entourada (meses)3624
Estação de montaÀs vezesSim
Taxa de natalidade (%)40 a 5080 a 87
Taxa de mortalidade (%)7 a 122-3
Peso ao desmame (kg)160200 a 230
Descarte de novilhas (seleção)NãoSim
Descarte de vacasVende magraVende gorda
Touros com genética superiorNãoSim
Exame andrológicoNãoSim
Calendário sanitárioEm parteSim
Carga média (kg de peso vivo/ha)193 (0,43 UA)193 a 270 (0,43-0,6 UA)
Produtividade (kg de peso vivo/ha/ano)67167
Melhoramento de campo nativoÀs vezes (menos de 4% da área)Sim (mais de 20% da área)
Pastagem cultivadaNãoÀs vezes
Resultado financeiro (Propriedade de 100ha)*
Taxa de desfrute (em UA)13,08425,676
Receita bruta (R$)24.750,4049.493,41
Receita líquida (R$)16.150,4033.853,41

*Preços médios praticados em 2014.

Fonte: Pinto et al. (no prelo).

O Reprotec contribuiu com o sequestro de mais de 150 mil toneladas de carbono/ano da atmosfera (Foto: Aires Mariga/Epagri)

Visão de futuro

A produção de carne sustentável com altos índices de produtividade mostra que o Reprotec caminha na direção certa. Os coordenadores afirmam, porém, que há muito a fazer. O objetivo é transformá-lo em um projeto de desenvolvimento regional e expandir as ações para 61% do território do Planalto Sul Catarinense, o que equivale a uma área de 681.402ha. Cassiano e Newton explicam que, seguindo a evolução dos índices zootécnicos já comprovados, em até 20 anos a região deve produzir aproximadamente 111.240 terneiros de qualidade superior e 26,14 mil toneladas de equivalente carcaça, o que vai gerar incrementos econômicos na ordem de R$392,95 milhões.

Cassiano ressalta que, para que isso aconteça, é necessária a execução de ações estratégicas para atacar os pontos fracos da cadeia produtiva. Uma delas é a criação de linhas de crédito e políticas públicas específicas para o acesso a tecnologias e transformação da matriz produtiva da pecuária de corte.

Outra é a criação de um programa para fomentar a produção de terneiros de qualidade em maior quantidade. O pesquisador explica que, por Santa Catarina ter o status sanitário livre de aftosa sem vacinação (o único do País), a única maneira de aumentar o volume de carne produzida é aumentar o número de terneiros nascidos no Estado, já que a entrada de animais vivos deve ser apenas de lugares com o mesmo status sanitário.

Newton também chama a atenção para a criação de um fundo de financiamento contínuo de linhas de pesquisa e extensão rural como forma de massificação de tecnologias para o desenvolvimento da cadeia produtiva. “O fomento de alianças estratégicas de mercado, que vão do conhecimento aplicado nas propriedades para produção de terneiros de qualidade até a gôndola do supermercado, é fundamental”, diz.

A transformação do Reprotec em um projeto de desenvolvimento regional, e talvez até estadual, vai permitir não apenas a autossuficiência catarinense na produção de carne bovina; vai mudar a categoria do Estado de importador para exportador. Com um produto de qualidade nos mercados nacional e internacional, o resultado será produtores capitalizados e uma Santa Catarina mais rica e sustentável.

Por Isabela Schwengber, jornalista – isabelas@epagri.sc.gov.br

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