A segurança alimentar e nutricional (SAN) pode ser definida como a garantia de acesso pleno e irrestrito à alimentação de qualidade sem que o custo para a sua aquisição comprometa outras necessidades essenciais para uma vida digna. De acordo com dados da Organização das Nações Unidas (ONU), publicados no relatório O Estado da Segurança Alimentar e da Nutrição no Mundo (SOFI), aproximadamente 773 milhões de pessoas passaram fome em 2023. Este número representa um retrocesso de 15 anos nos níveis de desnutrição, que são comparáveis aos registros da série histórica de 2008-2009.

No Brasil o tema ganhou ainda mais relevância com a pandemia da Covid-19, quando uma série de fatores, como o aumento do custo dos alimentos, a diminuição da renda e a descontinuidade de políticas públicas, afetaram de maneira significativa o acesso dos brasileiros à alimentação. O Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar, publicado em dezembro de 2020 pela Rede PENSSAN, apontou que neste contexto, apenas 44,8% dos lares brasileiros estavam em segurança alimentar. Por outro lado, 55,2% dos domicílios enfrentavam algum nível de insegurança alimentar, sendo que 9% enfrentavam insuficiência alimentar grave. Em 2022, o levantamento constatou que 58,7% da população convivia com insegurança alimentar em grau elevado. Nos últimos anos, o país tem conseguido diminuir estes índices, como demonstra a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, realizada pelo IBGE. O levantamento constatou que, em 2023, houve uma queda na fome, com 27,6% dos domicílios ainda enfrentando algum grau de insegurança alimentar.
Diante da relevância do tema, práticas e ações até então pouco abordadas pela comunidade científica, como o autoconsumo, começam a ganhar destaque em publicações de diferentes áreas do conhecimento. É o caso do artigo apresentado pelos pesquisadores da Epagri/Cepaf, Clóvis Dorigon e Cristiano Nunes Nesi, à revista Extensão Rural, que aborda o autoconsumo e a transferência de alimentos em famílias multilocalizadas no Oeste de Santa Catarina.
A produção para autoconsumo como aliada da segurança alimentar
Estudos indicam que nos últimos anos houve uma mudança de percepção acerca da importância do autoconsumo. Antes considerado uma prática arcaica, adotada por populações mais empobrecidas, hoje é reconhecido como um recurso relevante na busca por mais autonomia e acesso a uma alimentação saudável. Além disso, o autoconsumo está diretamente relacionado à produção artesanal de alimentos, uma vez que uma parcela de agricultores, com o apoio da Epagri, prefeituras, universidades e ONG’s, começam a produzir itens diferenciados, como coloniais, orgânicos e agroecológicos, por meio de pequenas agroindústrias familiares.
Os autores afirmam que historicamente a produção para autoconsumo esteve sob responsabilidade das mulheres e que esta atividade sempre existiu nos estabelecimentos rurais de base familiar do Oeste de Santa Catarina, independente da fonte de renda principal e da relação dos produtores com o mercado. Deste modo, pesquisadores da Epagri em parceria com a Unochapecó conduziram uma investigação no Oeste de Santa Catarina com o intuito de produzir conhecimento acerca da produção de alimentos para o autoconsumo e sua transferência para familiares que vivem nas áreas urbanas. O tema, ainda pouco estudado na região, integrou o projeto “Caracterização da produção de alimentos para autoconsumo na região oeste catarinense”, realizado entre 2018 e 2020.
A pesquisa foi desenvolvida em 112 cidades através de questionários estruturados aplicados por extensionistas dos escritórios municipais e regionais dos municípios abrangidos pela pesquisa. Foram ouvidas 381 famílias, sorteadas a partir do banco de dados da Epagri. Dentre as famílias entrevistadas, todas, independente da atividade principal da propriedade, afirmaram se dedicar também ao cultivo de alimentos para o autoconsumo.
O artigo explora especificamente a transferência de alimentos em famílias multilocalizadas, ou seja, aquelas cujos membros vivem ou desempenham atividades econômicas em locais diferentes, frequentemente transitando entre áreas rurais e urbanas. O enfoque escolhido foi o repasse de produtos para os filhos que trabalham e residem na cidade e a importância socioeconômica desta prática, especialmente para a promoção da segurança alimentar. Os pesquisadores afirmam que “provavelmente, não fosse esta transferência de alimentos, a dieta alimentar destes familiares seria mais pobre, sobretudo no que diz respeito a alimentos mais caros e de melhor qualidade, especialmente carnes e derivados (embutidos de carne suína), leite e derivados, sobretudo queijos”. Assim, a transferência desses alimentos proporciona o acesso a uma dieta saudável e também gera economia. A pesquisa destaca que quando somados os valores médios que os agricultores estimam economizar com a produção para o autoconsumo, se obtém um valor de R$1.351,99 em valores de maio de 2018 quando foram aplicados os questionários, que corrigidos pelo INPC para maio de 2024 corresponderia a R$1.896,59 mensais, valor superior, portanto, a um salário mínimo (R$1.412,00 em 2024). Cabe destacar que esses valores não resultam de cálculo econômico, mas da percepção dos agricultores que, em geral, tendem a subestimá-los.
O estudo não observou grandes diferenças entre propriedades rurais pequenas e aquelas com maior área, indicando que esta prática não tem relação somente com o fator financeiro ou nutritivo, mas também com questões culturais e afetivas. Deste modo, os pesquisadores afirmam que os alimentos recebidos não são apenas um auxílio para a alimentação, mas sim, uma forma de vínculo com a família que vive no meio rural.
Por fim, o trabalho salienta a grande variedade de alimentos produzidos e repassados para familiares que vivem nas áreas urbanas, tais como frutas, verduras, grãos, plantas medicinais e aromáticas, carnes, leite e derivados, mel, panificados, entre outros produtos. O coordenador da pesquisa, Clóvis Dorigon conta que atualmente estão trabalhando com informações fornecidas por aqueles que recebem os alimentos. “No momento estamos analisando os dados de 80 pessoas entrevistadas em uma segunda pesquisa, com o objetivo de compreender a importância socioeconômica e para segurança e soberania alimentar e nutricional da transferência de alimentos. Conversamos com pessoas que são independentes financeiramente e que residem fora do estabelecimento rural, mas que buscam e recebem regularmente alimentos”, diz.
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Por: Karin Helena Antunes de Moraes, jornalista bolsista Epagri/Fapesc